EDITORIAL – MONSTRUOSIDADE, CINEMA E POLÍTICA

Caetano já havia dito em uma de suas canções que “de perto, ninguém é normal”. E essa é a máxima que resta após se ler essa série de textos que agora compõe este dossiê.   Sim, basta que nos aproximemos um pouco de nosso semelhante para perceber por entre as névoas de sua singularidade algo que se furta na escuridão, uma sombra que se esgueira para deixar à mostra somente o véu tranquilo de uma normalidade. De perto, ninguém é normal porque de perto o monstro que há em nós pode saltar e tomar a cena, pode assustar, porque já não há regra possível a conter o caos quando a deformidade se impõe como lei. Na verdade, o monstro, dentro das narrativas modernas e contemporâneas, transgride ao dar excesso a visibilidade e, com isso, adquire o perfil simbólico ideal para pautar novas legislações sobre o espaço, sobre o corpo e sobre a ética. Sua figura instaura o contexto de afirmação da alteridade, de manifestação da diferença, algo que se realiza somente quando se supera o medo do “anormal” para se romper as barreiras limitantes de novas possibilidades de vida, de novas formas de pensar.   

Seguindo por caminhos mais teóricos, alguns textos apresentados aqui tentam encontrar um sentido que ancore a monstruosidade justamente nesse lugar da reação a uma ordem hegemônica e castradora. Em O que é um monstro? João Victor de Sousa Cavalcante buscará sua resposta no longa-metragem Freaks, de Tod Browning, no qual pessoas com deformidade habitam regiões limítrofes; já em Dinâmica monstruosa das metamorfoses, Guilherme Sarmiento considerará os monstros como índices da transgressão da forma cristalizada e conservadora; seguindo por este caminho de embate com a ordem dada, Assombro encarnado ou o sangue como argamassa, de Felipe de Silva Borges, partindo do curta Menino aranha, depreende a importância da construção espacial para a figuração monstruosa. Rafaela Germano, por outro lado, destacará o papel do feminino como elemento participativo na inquietação diante da diferença em Ensaio sobre uma serpente na garganta ou como cuidar do monstro dentro de si ao invés de matá-lo.

Outros artigos propõem através do tema diálogos frutíferos entre os campos das artes e da cultura, de maneira geral, para delimitar um amplo espaço de circulação destas criaturas imemoriais. Em Atmosferas góticas:o cinema e o insondável das imagens, José Cláudio S. Castanheira propõe um diálogo do cinema com a literatura para se entender as raízes do gótico e sua entrada na sétima arte; João Marciano Neto envereda pelo folclore brasileiro, seu bestiário, e a representação deste universo mágico nos filmes de horror nacionais no artigo Terror Tupiniquim: um brevíssimo ensaio sobre a brasilidade que assombra; por fim, Gilmar Hermes e Larissa Rodrigues Bruno em Análise semiótica de um texto jornalístico: em a “sombra do pai”, a busca pela mãe interpretam, a partir da semiótica pearceana, os sentidos do horror nacional contidos na crítica de Luiz Carlos Merten. Fora da seção Dossiê, ainda publicamos um texto inédito de Jacques Aumont traduzido por Fernanda Carneiro Martins, Onde começa, onde termina o expressionismo.

Antes de finalizar, gostaria de agradecer ao Professor Adriano Oliveira, da Universidade Federal do Ceará, que, mesmo não publicando neste número, ajudou a pensar o dossiê e revisou alguns textos aqui apresentados. Além dele, o Conselho Editorial para compor o dossiê teve a participação de: Rafaela Germano, João Marciano Neto e Guilherme Sarmiento.

Eis o cardápio da Cinecachoeira. Arrepiem-se e boa leitura!