MAYA DEREN E O MOVIMENTO CRIATIVO NO/DO CINEMA

Por Dorotea Bastos

Reconhecidamente pioneira no campo da dança no cinema, Maya Deren é considerada uma das maiores e mais influentes cineastas do cinema experimental. A inspiração na obra de Deren, entretanto, não se limita à sua produção fílmica: mulher, mestiça, crítica fílmica, escritora, poeta e dançarina, a cineasta foi desbravadora e visionária em seu campo de atuação.

Maya Deren era russa e migrou para os Estados Unidos ainda criança. Na década de 1930, investiu em estudos na área jornalística, das ciências políticas e da literatura e, posteriormente, começou a estudar fotografia e cinematografia. Ainda jovem, Deren começou a trabalhar com nomes que, junto ao seu, são considerados como parte da vanguarda, como Marcel Duchamp e Man Ray.

Maya Deren desejava fazer cinema para todos – inclusive para ela mesma –, colocando-se na condição de audiência da sua própria obra. Utilizou técnicas e recursos inovadores, subverteu o uso das tecnologias e fez cinema extrapolando os limites da narratividade linear. Em seus filmes, a dança já não era apenas uma ferramenta para a narrativa fílmica, como na maioria dos musicais, ou somente uma possibilidade de registro de movimentos de aparatos tecnológicos, mas, sim, uma linguagem que poderia ser incorporada e vivenciada no cinema.

Em sua escrita sobre cinema, Deren problematiza a questão do meio, da utilização da imagem e da narrativa fílmica. Para ela, o fazer cinema está relacionado à manipulação do espaço e do tempo, sendo que, no filme, a imagem pode e deve ser apenas o ponto de partida, o material básico da ação criativa (DEREN, 1960).

Apesar de ter realizado poucos filmes, dentre os quais alguns não finalizados, sua obra tornou-se tão significativa para a relação entre dança e cinema, que foi desenvolvido um termo específico para o tipo de produção que realizava: coreocinema, proposto por John Martin, em 1946. A expressão coreocinema unifica dança e filme num mesmo termo que remete ao movimento (AUSTVOLL, 2004). Essa análise possibilita o questionamento a respeito do tipo de movimento de que estamos tratando ao falarmos das obras de Maya Deren.

Uma vez que o cinema é caracterizado pelas imagens em movimento, apresentar “um cinema” cuja preocupação é o movimento não parece abarcar toda a complexidade que o termo evoca. Deren indica que o cinema proporciona uma experiência e que seus filmes podem ser considerados coreográficos por se referirem a uma transfiguração desse movimento, dimensionando-o como um ritual e não apenas em sua funcionalidade, o que assevera sua intenção criativa e não meramente mecânica.

Ao falar do cinema, Deren procura apontar as suas especificidades e explica que a linguagem cinematográfica possui interseções com as mais diversas artes:

“tem em comum com as artes plásticas o fato de ser uma composição visual projetada numa superfície bidimensional; com a dança, por poder lidar com a composição do movimento; com o teatro, por criar uma intensidade dramática de eventos; com a música, por compor em ritmos e frases de tempo e ser acompanhado por canção e instrumento; com a poesia, por justapor imagens; com a literatura em geral, por abarcar em sua trilha sonora abstrações disponíveis apenas à linguagem” (DEREN, 2005, p.123, tradução livre).

Particularmente, há três filmes que despertam em mim um maior interesse como pesquisadora e artista e que, em certo aspecto, marcam diferentes estágios de sua produção: Meshes of the Afternoon (1943), A Study in Choreography for Camera (1945) e “The Very Eye of Night” (1958).

Meshes of the Afternoon foi criado por Maya Deren e realizado com a colaboração do seu marido, Alexander Hammid. Foi a primeira e mais conhecida obra de Deren e significou um marco para o cinema experimental e para as relações entre dança e cinema. O filme também é considerado uma referência para o estudo da interação entre corpo e câmera, explorando aspectos sensoriais através de passagens oníricas, uma marca do seu trabalho.

Com Meshes, Maya Deren inscreve-se, assim, no cinema surrealista, envolvendo o espectador no clima de suspense que evoca um pesadelo. Uma sequência em que, a cada momento, um novo objeto ou nova ação da trama é revelada e que, ao mesmo tempo, é a repetição e continuidade de algo anteriormente utilizado. A câmera movimenta-se em pontos de vista diferentes, passando a sensação de observar e de ser observado, revelando o propósito de manipular o espaço e o tempo. Uma das principais influências de Deren para realizar o filme foi a poesia, que possibilitou uma articulação entre as imagens e a literatura. Maya Deren teria encontrado, nas expressões visuais as respostas que não seriam possíveis apenas com os signos linguísticos. Ainda hoje, Meshes of the Afternoon provoca muitos questionamentos, multifacetadas possibilidades e interpretação e proporciona uma experiência que ultrapassa a mera tentativa de se entender uma narrativa.

Para John Rhodes (2011), pesquisador da obra e vida de Maya Deren, Meshes of the Afternoon é, ao mesmo tempo, um ponto de origem, um ponto de transição, um ponto de interseção, um artefato de uma visão modernista e um documento do feminismo político, dadas as suas multifacetadas possibilidades de interpretação e considerando o que representou – e representa – para a história do cinema.

O mesmo acontece em A Study in Choreography for Camera, de 1945, um filme com pouco mais de dois minutos de duração e que se tornou uma das obras mais significativas de Maya Deren. De grande relevância para o estudo da interação entre dança e cinema, nesse trabalho, Maya consegue unir a dança coreografada para a tela às técnicas de edição, reconfigurando a dança e reafirmando o conceito de coreocinema proposto por John Martin (BASTOS, 2013).

Para João Vieira (2012), A Study in Choreography for Camera é uma experimentação do corpo e se afasta da noção que temos de obra completa, acabada, sendo um trabalho que demonstra um processo criativo que explora o corpo em relação ao espaço. O filme possui um explícito conteúdo de dança e uma utilização muito bem planejada de técnicas fílmicas. O autor aponta que este filme

“carrega no título certo descompromisso com o produto acabado, finalizado, ao tratá-lo como simples anotação de trabalho, experimentos relacionados à representação do movimento corporal na dança, em diálogo estrito com o registro e as possibilidades infinitas oferecidas pela justaposição de planos no processo de montagem. […] Deren também afirma, com este filme e através da dança, o potencial que o cinema oferece de romper com os limites e as fronteiras físicas de um palco ou de um espaço unívoco de representação” (VIEIRA, 2012, pp. 24-25).

Segundo Deren, o processo de criação de uma coreografia deve ultrapassar o desenho do movimento para pensar e estabelecer os padrões que vão compor uma unidade entre o movimento do corpo, o dançarino e o espaço, buscando não condicioná-lo ao espaço teatral, o que, inclusive, foi uma de suas preocupações ao fazer seus filmes (DEREN, 1945). É possível perceber que esse interesse em extrapolar os limites está presente em todas as suas obras, mas em A Study in Choreography for Camera essa característica fica mais evidente.

Outro ponto que merece destaque nessa obra é a disposição dos elementos visuais, como a escolha do cenário – Metropolitan Museum – que permitiu que fossem feitas imagens em ambientes internos e externos e possibilitou a execução dos movimentos elegidos para compor a obra, como o jeté e a pirueta, sequência que, segundo a própria cineasta, demonstra como a câmera pode colaborar com a criação do movimento em dança, o que também pode ser percebido em The Very Eye of Night (1958).

Para Deren, o ato criativo é válido sempre que existam (e enquanto existam) ideias que, de alguma forma, sejam diferentes das que já estão postas, proporcionando uma nova experiência para aqueles que as acessam. Segundo a cineasta, o filme The Very Eye of Night foi inspirado pela existência de um grupo de pessoas para o qual o conteúdo presente no filme possa ser novo, sendo uma obra direcionada para aquela parcela da humanidade que pensa a respeito da natureza das coisas (DEREN, 1963).

Última obra – e uma das poucas – que Deren chegou a concluir, foi fortemente influenciada por seu filme anterior, Ensemble for Somnambulists, que já apresentava a ideia de corpos que dançam no espaço. Para a realização de The Very Eye of Night, Deren contou com a colaboração da Metropolitan Opera Ballet School, cujos dançarinos aparecem em negativo durante o filme, numa espécie de dança etérea, no cenário que representa um céu estrelado.

Quando da criação desse filme, Maya Deren já havia percorrido diversas técnicas, temas e possibilidades cinematográficas, e sua preocupação assentava-se no ser humano, nas possibilidades de levar para a tela a ação metafísica da mente humana. Nesse curta, os corpos no espaço são dispostos e entrelaçados de modo a produzir novos corpos, novas relações, criando a narrativa a partir do movimento do corpo, que se inicia na geração das imagens, sem se limitar a elas. A preocupação estética e poética de Deren em The Very Eye of Night transforma as questões existenciais e problematiza o espaço e o tempo por meio de um jogo onírico de corpos sem gravidade, que dançam, mesclam-se, fundem-se, num híbrido de corpo, luz e sombra que ultrapassa as barreiras físicas da tangibilidade da matéria. Neste filme, Deren propõe que

“a vida diurna e a vida noturna são como negativos uma da outra, e que ele (o homem) sentirá a presença do Destino nas lógicas imperturbáveis do céu noturno e nos padrões irrevogáveis e interdependentes de órbitas gravitacionais.” (DEREN, 1963, p.172, tradução livre).

Apesar de todos os detalhes que foram levados em consideração ao fazer o filme, esta é uma obra considerada controversa pela crítica. De um lado, alguns a definem como pouco relevante para o cenário fílmico, por não conter as imbricações e os jogos de cena que ficaram mundialmente conhecidos através da sua obra mais célebre e aclamada, Meshes of the Afternoon; de outro, entusiastas da obra da cineasta alegam que é necessário perceber o estágio de evolução criativa que envolve o processo de The Very Eye of Night e o apontam como uma de suas maiores realizações.

O fato é que a importância das obras de Maya Deren para o estudo do audiovisual e das relações entre o cinema e a dança é indiscutível. Apontada como a mais expressiva cineasta norte-americana no cinema experimental, suas produções continuam influenciando diretores e produtores das mais diversas áreas das imagens em movimento. Seus filmes marcaram a trajetória do cinema experimental e dos filmes de dança e são obras de referência para o estudo da interação entre corpo e câmera, trazendo um diálogo que aproxima a dança e a inovação tecnológica do cinema. Esse diálogo, conceituado como coreocinema, nos leva a um novo pensamento sobre arte e tecnologia das imagens em movimento.

Ao esculpir um filme, Maya Deren encarnava suas próprias características, seus pensamentos e seu corpo junto à obra. Num processo de fluidez e rupturas, de movimento, silêncio e experimentalismo, a cineasta inscrevia seu processo compositivo, de forma a propor um novo texto, um novo movimento criativo, que atualiza e extrapola conceitos, fazendo referência a uma relação híbrida que expande as fronteiras da dança e do cinema.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

AUSTVOLL, A. Choreocinema. Dissertação de mestrado, University of Surrey, Guildford, Surrey England, 2004.

BASTOS, D. Mediadance: campo expandido entre a dança e as tecnologias digitais. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Salvador, Salvador, BA, Brasil, 2013.

DEREN, M. Choreography for the Camera. In Dance Magazine, October, 1945.

DEREN, M. Cinematography: The Creative Use of Reality. Daedalus 89, n. 1, 1960.

DEREN, M. Essential Deren: Collected Writings on Film by Maya Deren. New York: Documentex, 2005.

DEREN, M. The Very Eye of Night. In Film Culture, n.29, 1963.

Keller, S. Maya Deren Incomplete Control. Columbia: Columbia University Press, 2014.

VIEIRA, J. O Visionário Cinema de Fluxo de Maya Deren. In Caldas, P. et al. (Org.). Dança em foco: ensaios contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012.

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